❄ Não se Trata de Criar Anticorpos
(Delia Steinberg Guzmán)
Vivemos em um mundo poluído e nos acostumamos com isso. Principalmente nas grandes cidades, o nível de poluição ambiental aumenta a cada dia, mas, como não podemos abandoná-las, porque nelas estão ancoradas nossas obrigações, simplesmente nos adaptamos a essa situação. Nosso organismo criou anticorpos, e quase naturalmente nos acostumamos ao antinatural.
Porém, o processo é mais complexo: a situação não se reduz ao meio físico, mas se expande aos planos psicológico e mental, contaminando as vivências humanas a pontos inimagináveis.
A sujeira psicológica se manifesta em emoções grosseiras que se introduzem em todos os espaços da vida. A violência, a agressividade, o egoísmo extremo, parecem ser as medidas usuais na maioria das sociedades.
Ao princípio, causam grandes sofrimentos – e continuam causando –, mas, se antes alguém se perguntava até onde seria possível suportar sim explodir, criamos anticorpos para nos defender e seguir adiante como podemos.
Certamente a insegurança, o temor, a vulnerabilidade, nos perseguem, mas os anticorpos geraram uma forma de indiferença, que parece indiferença, mas não é. Essa frieza com que aceitamos as maiores crueldades – com a qual tomamos café da manhã todos os dias, graças à mídia – é uma forma de resistir, um dizer a si mesmo “ainda não me atingiu, ou vai me atingir mais adiante, ou talvez nunca … “
E o que fazer com a corrupção que se apresenta inesperadamente em qualquer canto, até mesmo naqueles que considerávamos lugares conhecidos e seguros? De novo a indiferença, tirar o corpo fora e continuar andando como se não tivéssemos visto nada, pois intuímos que nosso protesto, além de estéril, seria prejudicial para a nossa segurança. Há aqueles que entram no jogo, justificando-o; outros se afastam para não adoecer. De uma forma ou de outra, os anticorpos nos fazem ver como algo quase normal o que, conscientemente, nos deixaria envergonhados.
As ideias que predominam hoje são atacadas por diversos vírus. Em princípio, não é comum ter ideias, pensar bem; há um conjunto bastante escasso de objetos reconhecidos pela opinião pública, habilmente manipulada e, na ausência de outra coisa, isso é o que todos acreditam pensar.
Diante da doença, os anticorpos voltaram a aparecer: assimilar essas ideias, se é que merecem chamar-se assim, e rejeitar qualquer outra que se oponha a elas. No fundo, essa passividade não é saudável, é apenas um reconhecimento subconsciente de que não aprendemos a raciocinar por conta própria e que, mesmo se tentássemos, seríamos considerados loucos.
Sofremos mutação. Embora os anticorpos nos ajudem a viver de certa maneira, essa forma de vida não é natural. Se de repente deixássemos nossas sociedades poluídas e fôssemos para algum lugar paradisíaco, onde tudo fosse diferente e melhor, quando voltássemos, descobriríamos até que ponto nos acostumamos a respirar em meio à sujeira.
Em tal situação, restam-nos duas opções: resignar-nos à mutação, acorrentando gerações humanas cada vez mais artificiais e adaptadas à poluição deformante, ou rejeitar a poluição, buscando remédios para limpar o ar, os sentimentos e as ideias. Esta última tarefa é muito difícil. Se tivéssemos começado antes, o trabalho seria menor, mas agora temos que enfrentar uma peste que nos sufoca e que, em muitas ocasiões, nos tira as forças para abrirmos passagem. Mas vale a pena. Não se trata de criar anticorpos, mas de viver com corpos sadios; não se trata de viver defendendo-se de mil ataques, mas de viver criando mais e melhores possibilidades para o ser humano. À luz da Filosofia, os campos da ecologia são infinitos.
Delia Steinberg Guzmán
Nova Acrópole Brasil