"Das Lembranças Gidianas às Lembranças Freudianas"

Resenha ▪︎ "Das Lembranças Gidianas às Lembranças Freudianas", Geraldo Majela Martins. Porquê - Revista do Departamento de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva - Maio/1994. Belo Horizonte-MG.

"Já conheceis a história. Contudo, iremos repetí-la. Todas as coisas já foram ditas; mas como ninguém escuta, força é recomeçar sempre." (André Gide)

" - Você deve calar urgentemente as lembranças bobocas de menino.

- Impossível. Eu conto o meu presente com volúpia voltei a ser menino." (Carlos Drummond de Andrade)

No mundo literário, inúmeras vezes, os escritores fizeram das suas lembranças prosa poética. Freud notara que a atividade imaginativa do escritor faz despertar os desejos do sujeito, retrocedendo, assim, às lembranças de uma experiência anterior do passado infantil. Desse modo, a lembrança expressa na escrita poética entrelaça, pelo fio do desejo, o passado, o presente e o futuro."

A tese de Freud é que "uma poderosa experiência no presente desperta no escritor criativo uma lembrança de uma experiência anterior - geralmente de sua infância -, da qual se origina então um desejo que encontra realização na obra criativa." A função da lembrança é substituir o brincar infantil, ocultando, assim, suas verdadeiras fantasias, mas, ao mesmo tempo, substituindo-as por novas formas de prazer, por exemplo, através da escrita, propriamente dita, e na própria leitura.

Santo Agostinho fez das lembranças suas "Confissões". Rousseau fez das suas construção filosófica e sua pedagogia. 

Marcel Proust usou as lembranças para procurar o tempo perdido, ora o perdendo ora o re-encontrando nas puras lembranças. 

André Gide, usou-as como fonte mediadora da verdade na medida em que ele garante no seu texto que "tinha horror às mentiras".

Em "Frutos da Terra", publicado em 1897, onde Gide insiste no aniquilamento de tudo que não fosse "sensação e fervor", aí evoca o tema das lembranças. 

"Busco por vezes no passado algum punhado de lembranças para com elas criar-me enfim uma história, mas perco-me e minha vida transborda de recordações. Parece-me que só vivo em um instante sempre novo. Isso a que chamam recolher-se é-me um impossível constrangimento: não compreendo mais a palavra solidão: ser em mim é não ser mais ninguém; eu sou povoado. - Aliás, não estou em mim senão em toda parte: e sempre o desejo daí me expulsa. A mais bela lembrança só se apresenta a mim como um destroços de felicidade. A menor gota de água, lágrima que seja, em me molhando apenas a mão, já se torna preciosa realidade."

Neste pequeno texto, o escritor evoca a força da lembrança de "criar--me enfim uma história". Essas ruínas da memória reconstruídas nas lembranças constroem a escrita, a história, para que o autor as assine.

A obra tem nome. "Não estou em mim senão em toda parte: e sempre o desejo daí me expulsa." Do mundo do "mim" ao sujeito da escrita um passo permeado pela lembrança que deforma, encobre, para edificar o texto.

Em  Freud, às lembranças são encobridoras. Lembra -se para encobrir, disfarçar, metaforizar a realidade sexual infantil. Freud tratou das lembranças por mais de uma vez. Em 1896, no seu artigo "A Etiologia da Histeria" ele as abordou a partir da importância patogênica que as impressões da infância têm sobre a neurose, a histeria. Em 1898, num artigo autobiográfico e intitulado "Lembranças Encobridoras", desenvolve longamente sobre a operação da memória e suas distorções, "a importância e raison d' être  das fantasias, à amnésia que cobre nossos primeiros anos, e por trás de tudo isso, a sexualidade infantil."

O tema retorna no seu artigo de 1910 - "Leonardo da Vinci e uma lembrança da infância" -. A partir de uma lembrança de Leonardo, aquela em que "estando ainda no berço, um abutre veio até mim, me abriu a boca com sua cauda, e bateu-me várias vezes com sua cauda entre os lábios. "Freud irá fazer uma série de construções dessa lembrança - tela de algo que é o reflexo de um fantasma de felação da relação da criança e sua mãe."

Freud pergunta pela natureza da lembrança, se de fato uma criança poderia lembrar -se de alguma coisa da época de sua amamentação. Fica destituído assim o caráter real da lembrança. Ela não seria uma recordação de Leonardo, mas uma fantasia posterior que ele transferiu para a sua infância. Assim, "muito diferentes das lembranças conscientes da idade adulta, elas não se fixam no momento da experiência para mais tarde serem repetidas: somente surgem muito mais tarde, quando a infância já acenou: nesse processo, sofrem alterações e falsificações de acordo com os interesses de tendências ulteriores, de maneira que, de um modo geral, não poderão ser claramente diferenciadas de fantasias."

Em sua análise de 1917 de Ditchtung uns wahrheit de Goethe, propõe uma validade universal para as lembranças. 

"Não deveria ser uma questão indiferente ou totalmente sem sentido todo detalhe da vida de uma criança que houvesse escapado ao esquecimento geral."

Poderíamos pensar que o lembrado é o elemento mais significativo, mas, a partir da interpretação, esta "mostrava que seu conteúdo exigia ser substituído por qualquer outro conteúdo, ou revelava que essas lembranças relacionavam-se com outras experiências inequivocamente importantes e que conhecemos por 'lembranças encobridoras'."

Acrescenta, ainda, que aquela recordação, que primeiro o paciente relata em análise, introduzindo a história de sua vida, vem a ser a mais importante, a "única que contém a chave das páginas secretas da mente".

Numa longa nota de rodapé do caso clínico do "Homem dos Ratos". Freud afirma: "Se é nosso desejo extraviarmos, em nosso julgamento, de sua realidade histórica, precisamos, sobretudo, ter em mente que as 'lembranças da infância' das pessoas somente se consolidam num período posterior, comumente nos anos de puberdade, e lembrar que isto envolve um complicado processo de reformulação, perfeitamente análogo ao processo de reformulação, perfeitamente análogo ao processo pelo qual uma nação constrói lendas sobre sua história primitiva. Logo se torna evidente que, em suas fantasias sobre sua tenra infância, o indivíduo, 'à medida que vai crescendo, procura apagar a recordação de suas atividades auto-eróticas e o faz exaltando seus traços de memória até o nível do amor objetal. (...) Isso explica porque nessas fantasias há abundância de seduções e atentados, onde os fatos foram limitados a atividades auto-eróticas e às carícias e punições que os estimularam. Ademais, torna-se nítido que, no processo de construção de fantasias sobre sua infância, o indivíduo sexualidade suas lembranças."

Retomando Freud, às lembranças são encobridoras na medida em que são revisões posteriores acerca dos vestígios da infância - "revisão que pode ter sido sujeitas a influência de uma diversidade de forças psíquicas posteriores."

Em 1899, Freud insistia que o valor da lembrança não está em seu "próprio conteúdo", mas nas relações existentes entre aquele conteúdo e algum outro que foi suprimido." 

Portanto, às lembranças talvez não sejam da nossa infância, mas relativas à nossa infância.

Na própria lembrança encobridora de Freud, embora apareça inocente, sua análise revela a função encobridora da realidade sexual infantil.▪︎ 

Geraldo Majela Martins

🐬 Jane Freitas Ribeiro